sábado, abril 24, 2010


O Violino de Austin

Acho que foi o meu único aniversário em que ninguém da família estava apertado. Papai tinha conseguido vender alguns móveis e a mamãe estava costurando melhor. Mas, por mais que eu pudesse exagerar um pouco dessa vez, a única coisa que eu poderia pedir era escutar. Desde o meu nascimento era só isso que eu fazia: “escutar e tatear, escutar e tatear, escutar e tatear...”
Bem nessa época, uma Orquestra bem razoável estava na cidade. Eu já havia escutado alguns concertos da janela do meu quarto, mas era tudo tão vago, tão vazio, tão longíguo. Eu queria sentir as notas penetrando de perto os meus ouvidos e a minha pele. Queria poder imaginar a cor de cada acorde, queria deixar que a melodia silenciosa dos dedos dedilhando as cordas dos instrumentos me fizesse dormir, mesmo que ninguém fosse reparar nisso. E foi o que eu pedi: uma entrada.
A mamãe quase caiu da cadeira quando eu comentei que gostaria de ir sozinho. Mas porque alguém precisaria ir junto? Tudo bem, eu não enxergo mas, fora isso, nasci saudável o suficiente para me cuidar pelo menos no meu aniversário. Meu pai a convenceu. Se não me falha a memória, foi a única vez em que eu o agradeci sem que ele me obrigasse ou que eu me sentisse obrigado. Fora isso, ele não era nada para mim além do meu progenitor.
Às vezes, quando eu prefiro sentir as estrela ao invés de dormir, me recordo de algumas coisas de quando eu realmente era pequeno. Lembro muitas vezes de ouvir meu pai falando que seria uma despesa a menos se me deixassem em qualquer lugar longe dali e eu nem perceberia a diferença. Pra ele eu não tenho sentimentos pelo simples fato de não ter desenvolvido os olhos, pra ele eu não sou um filho, sou um tormento, um aleijado.
Me envergonho de ter nascido dele, de ter sido gerado por ele, de ter a genética dele e de levar o nome dele no meu. Tenho medo de me tornar como ele é, de ser o mesmo homem que ele se tornou. Muitas vezes desejei que ele não pudesse ver, que um dia ele fosse como eu sou, que tivesse que sentir tudo e todos com a alma dos dedos. Tenho quase certeza que ele nunca conseguiria encontrar a garrafa verde de cachaça que a mamãe guarda na segunda porta do armário de cima da cozinha. Toda vez que eu penso assim, eu rio sozinho. Bom, como a garrafa é verde eu não sei, mas eu sinto que é, não poderia ser de outra cor.
Pois bem, lá estava eu, no meio de uma multidão de mãos, pés e vozes estranhas, procurando o meu lugar para sentar. Suspirei, mamãe tinha toda a razão, ela sempre tem razão, eu nunca ia conseguir sozinho. O jeito era pedir ajuda.
Toquei a mão esquerda de alguém. Era suave como quando a minha mãe dava pêssego pra eu comer no calor do verão, tinha cheiro de lavanda, unhas compridas, e dedo sem aliança; era nova e solteira. Pedi para que me mostrasse qual seria o meu assento e a moça apontou pra algum lado que eu não pude descobrir qual era, então eu a disse que era cego. O resto ela falou sorrindo, deu pra perceber pelo seu tom de voz. Disse que tinha vindo sozinha e que podia me fazer companhia se eu não me importasse, claro. Eu sorri e disse um simples sim.
Sentei no meu lugar e fiquei esperando o concerto começar. Enquanto eu esperava, a moça que estava me acompanhando tocou no meu rosto e eu me assustei, nunca ninguém estranho havia me tocado. Eu sentia que os olhos dela estavam em mim, mas não entendia o por quê até que ela disse, não com um tom penoso ou debochado, mas com um tom surpreso, que não podia entender como alguém tão bonito e charmoso como eu nunca tinha se olhado no espelho. Nessa hora eu senti um calor me contagiando e o sangue fluindo no meu rosto. Ela riu um riso leve e disse que eu havia corado, e então a Orquestra começou a tocar.
Senti como se meus membros já não fizessem mais parte do meu corpo, como se a minha cabeça zanzasse pelo salão, pelas cadeiras, pelos lugares ocupados, por todas aquelas mentes tão fascinadas quanto a minha. Degustei cada nota daqueles acordes como se nunca tivesse ouvido na vida, como se ao invés da visão, me faltasse a audição. Pensei em como pude não sentir aquilo antes, em como os barulhos da rua, das festas do quarteirão, dos saraus, dos Circos, nada daquilo jamais tinha me causado tamanho efeito. Vi toda a minha vida passando, como se cada parte dela fosse embalada pela música que tocava, como se cada momento da minha vida tivesse direito a uma trilha sonora. Porém, por trás de todas as notas, toda a melodia, todas as cordas e acordes, um instrumento se sobressaia, uma canção simples, penetrante, envolvente e quando a percebi, senti meu coração bater mais forte, mais intenso que o normal. Acho que não é o que a mamãe chama de nervosismo, mas não sei o que é. Apaixonei-me pela melodia daquele objeto e, naquele momento, quis saber qual era.
Mas como num sopro, uma brisa leve de primavera, acabou. As notas cessaram, o colorido que eu sentia terminou, o filme que passava na minha cabeça tivera fim e os meus ouvidos só escutam aplausos e murmurinhos de adoração. Então aquele mundo de gente começou a se movimentar, a sair do lugar em direção a saída. Me empurravam, esbarravam-se em mim e, por um momento, eu voltei a ser o garotinho com os ataques de pânico quando a minha mãe me levava até a feira fazer as compras da semana. Quase esqueci que não estava sozinho, até que uma mão macia com cheiro de lavanda tocou a minha e lembrei-me da moça que me acompanhara o concerto inteiro. Ela disse sorrindo que era pra eu ir com calma, ela estava ali, eu não precisava ter medo.
Depois que ela disse isso, eu realmente me acalmei. Só não entendia como ela sabia que eu estava com medo, minha irmã sempre dizia que eu era uma caixa de mistérios, ela nunca sabia o que se passava por trás dos meus olhos turvos. Bom, de um jeito ou de outro, ela estava me guiando desde o começo da noite, e eu era grato por isso. Pensei em falar mais alguma coisa, puxar algum assunto tipo “nossa, que noite linda, você não acha?”, mas eu não era a pessoa mais indicada pra falar uma coisa dessas. Quando chegamos na porta, aquela multidão já havia se dissipado e estava quase silencioso; pra ela devia estar, pra mim é que não estava. Eu podia sentir o coração dela batendo, cada pulsação leve e calma, muito diferente das minhas, que pareciam marchinhas de Carnaval. Isso sim deve ser o que a mamãe chama de nervosismo.
Bom, pelo que a minha irmã lera de seus livros românticos para mim, essa era a hora do “adeus, talvez nos vejamos por aí”, mas naquele momento eu não tinha coragem nem pra abrir a boca, então deixei que ela o fizesse, como tinha feito a noite toda. Ela perguntou como eu iria pra casa, não quis dizer que perguntou isso porque não sabia como um cego não se perderia nessa imensidão de ruas, mas eu sabia que era por isso. Disse-lhe que muitas vezes tinha saído sozinho de casa sem hora e companhia pra voltar. Era mentira.
Ela sorriu, disse que eu era um aventureiro de mão cheia e que me invejava por tamanha liberdade. Disse também que já era tarde, tarde demais pra uma moça solteira como ela estar na rua, deu um tchau tímido e saiu andando. Eu também dei um tchau, mas acho que foi tão baixinho e miúdo que ela sequer escutou. Quis perguntar o nome dela, mas achei atrevimento da minha parte. Deixei como estava.
Bem, eu não sabia voltar pra casa e também não sabia se queria voltar. Tinha sido a melhor noite da minha vida, não gostaria de deixar que a minha turbulenta família terminasse com os meus dezesseis anos. Então pensei em ficar ali, parado na porta do Teatro, sentindo a brisa, sentindo as estrelas, tentando fazer com que mais alguns anos passassem naquela noite... E do nada, como se eu tivesse feito o meu pedido ao assoprar as velinhas de aniversário, viva, eis que começa a chover.
Chuva pra mim era tal qual um concerto, cada pingo que cai no chão forma uma nota, tem uma cor. Era eu ali, sozinho, sentado nas escadas do Teatro aproveitando o segundo concerto da minha noite, quando outra musica, outro fundo musical começa a acompanhar aquela melodia silenciosa. Ouço o mesmo compasso, o mesmo timbre que se sobressaia no palco, a mesma harmonia tocante, os mesmo acordes solitários. Eu estava tão absorto na chuva que não reparei ninguém chegando, só quando escutei a música foi que percebi um perfume diferente. E lá estava, o mesmo homem que eu exaltava no palco, ao meu lado, tocando a melodia que havia me feito voar.
Quando parou, eu sorri. Acho que recebi um sorriso de volta, não sei, ele não respondeu nada. Não costumava puxar assunto, mas estava tão curioso que os costumes foram pra longe. Quis saber como era tocar, fazer música com os dedos, com a alma. Ele só disse “Experimente”. E eu estava apaixonado.
Ele me entregou o que eu havia descoberto a pouco. Um violino pequeno, leve, com cheiro de marrom e verniz. Tinha quatro cordas e uns arabescos estranhos em volta, uma almofada na ponta, um pouco pro lado, onde encaixava-se perfeitamente um pescoço. Achei aquilo engraçado, mas não parei de tatear. Passei os dedos pelas cordas, ouvi um ruído fino, depois um mais agudo, e acabei fazendo um barulho que dava pra chamar de música. Desajeitada, nada profissional, mas era música. Silencioso o homem ao meu lado esperava, senti, ouvia quieto, deixando eu me deliciar com aquela experiência. Não quis me aproveitar, então, relutante eu devolvi o violino.

Continua...
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