domingo, junho 27, 2010


Em Minhas Mãos

Eu a amava, sempre a amei. Sabia tudo sobre ela, desde cor favorita até a mania de combinar a meia com a roupa. Nós nunca nos falamos, mas o modo como ela falava com os outros, o modo como caminhava, como o cabelo voava com o vento e brilhava dourado no sol, tudo isso me encantava. Claro que nunca trocamos nenhuma palavra, além de um “oi” mais com a cabeça do que com a boca e alguns “desculpa” pelos esbarrões propositais nas portas das salas de aula. Uma garota popular como ela jamais falaria com um nerd como eu. Éramos de “raças” diferentes perante a escola, substâncias que não se misturavam, opostas demais para andarem juntas.
Passei inúmeros anos suspirando quando ela passava, acompanhando com a cabeça o movimento que o corpo dela fazia deslizando pelos corredores, sentindo silenciosamente o perfume que ela deixava pelo ar quando andava, sem dar uma palavra sequer a respeito disso. Ela nem sabia que eu existia, que eu estava lá e que eu a amava mais do que tudo. Ela nem sabia por que eu a amava; por que eu achava o sorriso dela tão divertido; por que eu achava que ela ficava deslumbrante de moletom, calça jeans e cabelo preso; por que eu achava que ela era a pessoa mais dedicada e inteligente que eu já havia conhecido. Eu a amava pelo que eu sabia que ela era, não por que todo mundo também a amava. Tudo nela me encantava. Eu sorria quando ela caia na educação física por ser tão desastrada, mas achava incrível como ela era graciosa andando de salto alto; eu sorria quando ela ia até o bar pedir chiclete de tutti-frutti, ou quando aparecia na escola com uma camiseta despojada com desenhos de ratos, e não entendia como esse poderia ser o animal favorito de uma garota tão linda.
Aquele era o último ano de estudos. No próximo ano, todos iam se separar, cada um pra um lado. Ela iria pra uma faculdade de Fotografia, que não era nada perto dali. E eu, com as minhas notas e o meu desempenho no colegial, tinha conseguido uma vaga numa ótima faculdade de Medicina, longe o suficiente da minha cidade e da minha garota que nunca havia sido minha. Diante dessa situação, tive que criar coragem, uma coragem que, realmente, não existia.
Na nossa formatura eu decidi, finalmente, que iria falar com ela. Ao menos pra dizer o que eu sentia e me livrar logo desse segredo que me corroia por dentro. Ela estava maravilhosamente linda. Não que não fosse, mas naquele dia, ela literalmente brilhava. O cabelo dourado, todo ondulado, combinava perfeitamente com o formato do rosto, e o vestido azul celeste realçava ainda mais a cor intensa que os olhos dela tinham. Eu fiquei completamente atordoado com toda aquela beleza.
No final da festa, eu a puxei pelo braço. Não me apresentei, mas fiquei rezando pra que, ao menos, ela soubesse o meu nome. Nenhum dos dois sorriu: eu, pelo nervosismo; ela, pelo susto. Não dava mais pra esperar, a maioria das pessoas já tinham ido embora e a cada segundo que passava, o meu coração ficava mais perto de sair pela minha boca. Em um turbilhão de sentimentos, o que eu consegui pronunciar não foi nada romântico nem tocante, foi quase uma afronta, uma ameaça, um aviso. O que não era a minha intenção. “Um dia, seu coração vai estar em minhas mãos”. E ela corou.

Tirei as luvas ensanguentadas e o jaleco, e sai da sala enquanto o aparelho mostrava a paciente deitada na cama já sem vida. Respirei fundo. Na faculdade, todos são teoricamente preparados pra perder alguém numa cirurgia, mas na prática, tudo muda. Eu havia falhado como profissional. Fiz tudo o que pude, mas isso não tirava a minha parcela de culpa. Peguei a prancheta pra fazer as anotações rotineiras e dar notícias a quem estivesse esperando na recepção. Li o nome, e foi como se um fantasma do passado viesse me assombrar.
A lembrança da formatura, da última noite no colegial, da última vez que eu a vi e das primeiras e últimas palavras que eu dirigi a ela. Aquela frase ressoava na minha cabeça. Eu senti vertigens, perdi o chão e tudo ficou escuro. Tive de me apoiar em qualquer coisa que estava por perto, sem saber se era algo ou alguém. Não tinha mais tato, nem audição, mas a minha mente repetia o tempo todo, repetia aquela maldita frase inúmeras vezes: “Um dia, seu coração vai estar em minhas mãos”.
Eu não tinha esperado todos esses anos pra cumprir a minha promessa, o meu aviso. Logo quando eu deixei de vê-la todos os dias, eu sabia que nunca mais iríamos nos encontrar, e que ter o coração dela nas minhas mãos seria impossível. Nessas alturas, eu não poderia nem imaginar se ela estava formada, casada, com filhos, ou se ainda morava com os pais na mesma cidade onde nos conhecemos e onde eu fui perdidamente apaixonado por ela. Eu ainda a amava, cada dia mais. Não havia me casado, nem formado uma família. Sequer dividia apartamento com alguém. Nunca me dei ao luxo de me relacionar com outra mulher, porque sabia que no meu coração só havia espaço pra garota de cabelos ondulados e vestido azul celeste.
Agora tudo estava perdido. Mesmo fingindo o contrário, eu pedia todos os dias para tê-la do meu lado, com o moletom despojado e a calça jeans, ou com o camiseta de ratinhos que ela adorava. Agradecia depois de cada cirurgia por não ter reconhecido o corpo dela deitado na maca. Mas agora, estava tudo perdido. A única vez que eu tive a oportunidade de salvar mais do que uma vida, eu falhei. Falhei quando não se podia falhar. Quando eu tive o seu coração em minhas mãos, eu o deixei morrer. Eu o senti parando entre os meus dedos.
Seu coração já não estava em minhas mãos. Sua vida já não estava em minhas mãos. Mas minhas mãos estavam sujas com o seu sangue morto.
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